René Guénon: um grande iniciado

Agradecemos ao tradutor 🇧🇷

Pelo Reverendo Padre Curzio Nitoglia

Introdução

A pessoa e a obra de René Guénon não podem ser indiferentes àqueles que tratam sobre verdadeira e falsa Tradição.

Um velho seguidor da escola de Guénon, Jacques-Albert Cuttat, definiu a doutrina guénoniana como “um neotradicionalismo, como se Guénon tivesse recuperado e incorporado, em um conhecimento mais amplo do Oriente, as três teses fundamentais do tradicionalismo do início do século XIX (especialmente de Joseph de Maistre e Lamennais), a saber: o antirracionalismo, a unanimidade tradicional como critério de verdade e, especialmente, a primazia espiritual do Oriente” (1).

Sabe-se que Guénon relativiza e reduz a mística cristã (que, aliás, não é apenas ocidental) ao sentimentalismo ou devocionismo (que nada tem a ver com a verdadeira mística, tendo pontos de contato com o falso misticismo), e isso demonstra o pobre conhecimento de teologia católica ascética e mística do próprio Guénon ou seu espírito anticristão. De fato, na obra guénoniana, os principais dogmas da religião católica são mal-entendidos e esvaziados de seu verdadeiro significado. Guénon, embebido de esoterismo cabalístico e maçônico, tentou infiltrar nos círculos católicos tradicionais a falsa ideia de uma tradição primordial universal e fundamental que abrange todas as diferentes religiões, mantendo em segredo sua filiação ao sufismo monista e à maçonaria escocesa.

Com o Concílio Vaticano II, “a intelligentsia católica se orienta para uma perspectiva que leva em conta o desejo de unidade das novas gerações. (…) que dá prioridade a pontos de encontro com as religiões não-cristãs. O tom não é mais aquele de refutar e excluir, mas, ao contrário, tomar para si a diversidade do potencial humano e do patrimônio religioso universal ” (2). E assim o tradicionalismo maçônico-esotérico abraçou o modernismo esotérico-maçônico (3).

A personalidade de Guénon

A maior estudiosa de Guénon, Marie-France James, afirma que seu caráter foi marcado por “nervosismo e exacerbada sensibilidade, às quais juntam-se a instabilidade, a impulsividade e a irritabilidade temperadas pela capacidade intelectual predisposta a estudos filosóficos e religiosos. A tudo isso deve ser acrescentada uma susceptibilidade exagerada e uma forte sensualidade” (4).

A infância

Renè Guénon nasceu em Blois, em 15 de novembro de 1886. De saúde debilitada. Completou seus primeiros estudos em uma escola católica onde, apesar de inúmeras ausências, tornou-se um aluno brilhante. No outono de 1901, ocorre um incidente banal em si, mas muito significativo no que diz respeito à sua personalidade: René é o primeiro da classe, mas o professor Simon Davancourt classificou-o segundo em francês. René faz disso uma tragédia a ponto de ficar de cama com febre alta. Seu pai o retira da escola e o matricula no colégio Augustin-Thierry (5).

James comenta: “Vemos que já no secundário, Guénon tem uma NECESSIDADE OBSESSIVA DE SER O PRIMEIRO, e, ao voltar de férias, nosso jovem perfeccionista está sempre lutando com a mesma obsessão, ou melhor dizendo, com o sentimento de culpa, a aflição por não ser mais que o quarto. Irritado, o jovem René reage com grande susceptibilidade, seguindo-se uma cena que, aos olhos de alguns, terá o seu definitivo cumprimento trinta anos mais tarde, quando Guénon partirá para sempre para as terras do Islã. ” (6).

Parece claro que o desejo, na verdade, a NECESSIDADE de chegar ao zênite, é uma tendência profunda da personalidade de Guénon (7). Ser mediano para ele significaria falhar; ser condenado à imperfeição o deprimiria.

René Guénon, então jovem bacharel, conheceu o canônico Ferdinand Gombault, doutor em filosofia escolástica. Por mais de trinta anos, até a partida de Guénon para o Cairo, estes dois intelectuais mantiveram contatos regulares, (ambos eram partidários da Ação Francesa), embora trabalhando em dois campos diferentes, até opostos: o canônico, um estreito tomista, ocupou-se com a apologia do cristianismo; Guénon, influenciado pelas correntes maçônico-ocultistas, voltou-se para a Gnose. Segundo James, o canônico, bem como todos os amigos católicos de Guénon, ignorava sua escolha pelo menos até a década de 1930.

Os mestres de René Guénon

Por volta dos vinte anos, Guénon é apresentado à Escola Hermética dirigida por Papus (pseudônimo do Dr. Encausse) e segue os cursos que são dispensados. É recebido na ordem martinista e nas várias organizações maçônico-ocultistas anexas. Em 1908, colabora na preparação do Congresso Espiritualista e Maçônico. No entanto, tende a afastar-se da linha geral (qualificada por ele como materialista) dos ambientes ocultistas de seu tempo e toma, então, uma posição contra algumas das idéias de Papus.

A hipótese mais provável, sem provas decisivas, é que Guénon, no mais tardar em 1909 (época de sua elevação ao episcopado gnóstico sob o nome de Palingenius), beneficiou-se de contatos decisivos com hindus da corrente vedantista; ainda nesse ano é filiado à Loja Maçônica Thèbah (Grande Loja de França). Em 1912, é iniciado no sufismo e se casa… num rito católico! No mesmo ano, confirma sua afiliação maçônica à Loja Thèbah, filial da Grande Loja de França de Rito Escocês Antigo, e é aceito. De 1913 a 1914, colabora com a revista La France Chrétienne Anti-Maçonnique (A França Cristã Antimaçônica) sob o pseudônimo de A Esfinge. Estenderá, bem nessa época (como uma verdadeira “esfinge”), uma controvérsia com Charles Nicoullaud e Gustave Bord, colaboradores da Revista Internacional das Sociedades Secretas, em torno da questão dos Superiores Desconhecidos.

Em 1915, Guénon conhece uma jovem estudiosa tomista: Noele Maurice-Denis, que, em 1916, o apresenta a Jacques Maritain. Ainda nesse ano, suspende sua participação ativa no trabalho de sua Loja, que ele continuou a conduzir durante a colaboração com “La France Chrétienne Antimaçonnique”! Tal suspensão não era uma pausa, mas apenas uma “hibernação tática” em vista de “conduzir o catolicismo a referendar uma elite tradicional, chamada a reencontrar, a partir de uma perspectiva sincretista, a fonte única perdida… a verdadeira metafísica, de essência gnóstica. E é assim que, até o início dos anos trinta, Guènon irá se abster de tratar direta e abertamente da maçonaria, limitando-se a deplorar a degeneração e denunciar as tendências antitradicionais de que ela mesmo era uma vítima” (8). Segundo Guénon, o catolicismo nada mais é do que uma das formas parciais e veladas pelas quais a Tradição primordial e fundamental se manifesta em sua plenitude. Cristianismo, para ele, de fato, teve em sua origem um caráter esotérico-iniciático “do qual pouco se sabe porque as origens do cristianismo seriam cercadas de escuridão quase impenetrável. Escuridão desejada por aqueles que levaram a transformação da Igreja de organização obscura e reservada a organização aberta a todos, puramente exotérica. No entanto, essa transformação do cristianismo em religião exotérica foi providencial porque o mundo ocidental teria permanecido sem qualquer Tradição se não houvesse a Religião Cristã, já que a tradição greco-romana, então predominante, havia alcançado uma grande degeneração. O cristianismo endireitou o mundo ocidental, mas com a condição de perder seu caráter esotérico” (9).

Em 1921, Guénon assina um artigo na Revue de Philosophie de inspiração neotomista. Em 1922, volta a lecionar filosofia em um instituto dos Irmãos das Escolas Cristãs. Em 1925, começa a colaborar com a Revue Universelle du Sacré-Cœr, Regnabit, mas em 1927 a colaboração cessa e no lugar retoma a controvérsia com a R. I. S. S. (10).

Os círculos católicos, depois de uma breve hesitação devida ao caráter de “quinta coluna” da obra de Guénon nesses anos, rejeitam as suas teorias e Guénon, vendo falhar seu projeto de infiltração, emigra para o Cairo. No entanto, continua a sua tarefa de formar uma elite ocidental tradicional em uma tentativa de convergir a metafísica oriental, dita “universal” (ou gnose esotérica) com o catolicismo, idênticas em sua substância (para Guénon). A gnose deve-se apoiar na Tradição fundamental, que é essencialmente a mesma em todos os lugares, apesar das diferentes formas que adota quando se rebaixa a uma religião para atender cada raça e época. O objetivo esotérico de Guénon é, portanto, de reinterpretar, reduzir, minimizar e trazer o cristianismo para um fundo comum “tradicional” de inspiração gnóstica, uma vez que, se em suas origens tem um caráter essencialmente esotérico e iniciático, a partir de Constantino e do Concílio de Niceia perdeu-a e tornou-se uma religião no sentido próprio do termo, com seus dogmas, sua moralidade universal e seus ritos públicos. Portanto, Guénon nega a divindade e infalibilidade da Igreja, sua transcendência em relação às outras culturas, o valor universal do Evangelho, a compreensão da doutrina evangélica inalterada, do modo como foi revelada por Cristo. Mas como Maurice-Denis escreveu: “Certamente sua ignorância e incompreensão do cristianismo eram totais” (11). Mas foi realmente ignorância? Isso é o que veremos.

Guénon e a Revue Internationale des Sociètès Secrètes por monsenhor Ernest Jouin

Padre Jouin, último de cinco irmãos, nasce em 21 de dezembro de 1844 em Angers. De saúde delicada e órfão de pai desde os quatro anos, em 1862 junta-se a seu irmão Amedeo no noviciado dos dominicanos de Saint-Maximin, transferido em seguida a Flavigny. Em agosto de 1866, problemas de saúde forçam-no a abandonar a austera vida dominicana; vai, assim, para o seminário de Angers, onde é ordenado sacerdote em fevereiro de 1868. (12) Em julho de 1882, é nomeado pároco em Joinville-le-Pont (Seine) onde sofre ataques dos círculos anticlericais, e com isso, começa a travar as primeiras lutas antimaçônicas. Em 1910, adquire uma importante biblioteca maçônico-ocultista de cerca de 30.000 volumes e, em janeiro de 1912, funda a Revue Internationale des Sociètès Secrètes, composta de uma parte judeo-maçônica (a parte cinza) e uma parte ocultista (a parte rosa).

“L’Abbe Jouin acreditava em um plano judaico de dominação universal assim resumido: “Israel é o Rei, o Maçom é o seu camareiro o bolchevique seu carnífice”. Sua tese era que judeus e protestantes estiveram por trás da Maçonaria; que todos os três tinham o mesmo fim: a destruição da Igreja Católica ” (13). Feito Monsenhor pelo Papa Bento XV e protonotário apostólico por Pio XI, morre em 1932 com a bênção e a aprovação papal de sua obra que duraria até 1939. Sua causa de beatificação foi introduzida em Roma pelos “amigos americanos de Mons. Jouin ” (14).

Padre Jouin não é o primeiro a apoiar a tese da inspiração judaica da maçonaria. No século XIX, foi precedido por Abbé Barruel, Mons. Deschamps, Cretineau-Joly, Gougenot des Mousseaux, Mons. Delassus, Mons. Meurin. Partidário de um catolicismo integral, ele estava convencido de que “grupos nacionalistas e fascistas não têm, por si mesmos, poder para curar o mal. A guerra é religiosa. Nossa conversão é o único remédio ” (15).

Ele próprio tinha escrito: “Quando os católicos não vacilarem mais, quando se abastecerem de coragem através da prática das virtudes, quando retomarem a via do sacrifício para seguir o seu pobre e sofrido Messias ao Gólgota, quando não mais mendigarem sua salvação à direita e à esquerda, mas formarem o partido de Deus, como pediu Sua Santidade Pio X, a questão judaica será resolvida. (…) Mas os católicos devem estar bem conscientes de que, dão uma mão aos judeus se vivem, no fundo, como eles… preparam… o reinado despótico de um Qahal universal! ” (16).

R. I. S. S. (Revista Internacional das Sociedades Secretas) (1912–1939)

A R.I.S.S. tratava dos aspectos externos da seita infernal em sua parte cinzenta (judeo-maçônica); e dos interiores na parte rosa (parte ocultista). Ela era conhecida em todo o mundo e alimentada pelas informações de Mons. Umberto Benigni, fundador do Sodalitium Pianum. Se na ordem cronológica o monsenhor Jouin primeiro colocava a crítica do trabalho político ou externo das seitas secretas, na ordem da dignidade preferiu estudar seu trabalho secreto, esotérico e interno. Ele acreditava, com razão, que só um motivo religioso e muitas vezes sobrenatural poderia explicar plenamente o frenesi de destruição de todo bem que caracteriza o processo revolucionário, conduzido pelas sociedades secretas, cuja origem é o judaísmo posterior ao templo, cujo pai, como Jesus revelou, é o diabo (17).

René Guénon polemizará com a parte rosa do R.I.S.S. A tática de Guénon na longa controvérsia que travou com a R.I.S.S. era descreditar seus colaboradores e tentar impor-se como o único competente no assunto.

Divergências no seio do movimento antimaçônico

Entre os antimaçons há, no entanto, uma divisão: de um lado os nacionalistas antimaçônicos (Copin-Albancelli e Clarin de la Rive) que querem lutar contra a seita apenas numa base de defesa dos valores nacionais e patrióticos; a luta antimaçônica deve, para eles, ser essencialmente política ou nacional. Do outro, os antimaçons religiosos (Nicollaud, Jouin, Benigni), segundo os quais a maçonaria é uma “contra-igreja” que visa ridicularizar as pesquisas sobre o elemento preternatural nas lojas secretas (haja vista a manobra Taxil). Segundo Padre Jouin, para ser antimaçônico é necessário ser cristão, já que a Maçonaria é um macaco de Deus e da Igreja; Mons. Jouin vai colidir com Copin-Albancelli e Clarin de la Rive, que segundo ele não eram oponentes integrais do inimigo; a substância da divergência era o fato de que os antimaçons nacionais se recusavam a estudar a influência satânica na direção oculta da Maçonaria. Assim, o projeto de uma federação antimaçônica falhou e a controvérsia entre anti-maçons continuou, com efeitos graves para o bom combate, alimentada por um recém-chegado … o maçom René Guénon, aliás, Esfinge.

A colaboração do maçom Guénon em La France Antimaçonique

Em 1896, Clarín de la Rive torna-se diretor da La France Chrétienne Antimaçonnique, sucedendo Leo Taxil. De 1913 a 1914, o maçom Guénon colabora com essa revista! “Mesmo supondo que Clarin de la Rive não teve ocasião de consultar os registros da Grande Loja da França em 1912, todavia não foi capaz de ignorar a conferência do maçom Guénon sobre “O Ensinamento Iniciático”, publicada na Symbolisme de janeiro de 1913. A RISS mencionou essa conferência em seu índice documental (fevereiro de 1913, página 561)” (18). Então, como explicar a colaboração de Guénon com Clarín de la Rive, diretamente no campo antimaçônico? Como foi que Guénon pôde consultar, com a permissão do Clarin de la Rive, o dossiê sobre o caso Taxil (ex-diretor de La France Antimaçonnique) a partir do qual argumentará que afirmar a influência do satanismo na Maçonaria é da contra-iniciação, e que, se existem alguns grupos luciferianos e satanistas, estão longe da franco-maçonaria, que é uma organização tradicional que quer denegrir-se a qualquer custo. Parece que Clarín de la Rive e os amigos católicos de Guénon subestimaram sua iniciação na seita, como se Guénon tivesse rompido completamente com a Maçonaria.

Como muitos, Guénon aproveitou-se da campanha antitaxiliana, apresentando-se como o homem da tradição que quer dar à Maçonaria seu verdadeiro rosto, desfigurado por Taxil, combatendo maçons contemporâneos por seu “modernismo”, infiel à sua verdadeira vocação iniciática, de modo que a Maçonaria pudesse se tornar mais uma vez o que nunca deixou de ser virtualmente. Este trabalho sutil foi realizado em La France Antimaçonnique, com a cumplicidade (ou ingenuidade) de seus amigos católicos.

Guénon astutamente queria mudar desde dentro o pensamento antimaçônico e inspirar uma corrente católica em favor da Maçonaria tradicional, revista e corrigida à luz da metafísica oriental. Para isso, “por um lado, temos de trazer os maçons para a compreensão dos seus princípios e à consciência das suas funções, e por outro fazer os católicos admitirem que erraram ao combater a Maçonaria em si mesma e que devem, enquanto lutam contra os maçons degenerados, torcer pela restauração de uma Maçonaria autêntica” (19). E “depois de ter recordado a opinião já expressa por Joseph de Maistre, afirmou que: ‘tudo anuncia que a Maçonaria vulgar é um ramo separado e possivelmente corrompido de um tronco antigo e respeitável’, e que a Maçonaria moderna não é mais que o produto de um desvio ” (20). O golpe passou por Clarín de la Rive, mas foi barrado por Mons. Jouin.

Os “superiores desconhecidos”

Houve um longo debate entre Guénon, aliás, Esfinge, em La France Antimaçonnique, e Charles Nicollaud juntamente com Gustave Bord pela R.I.S.S. sobre a questão misteriosa dos Superiores Desconhecidos, dos quais Bord negava a existência destes como sendo simples homens de carne e ossos. Os Quaderni Romani, órgão da Agência Internacional de Roma, de Mons. Umberto Benigni, respondeu (14 e 28 de setembro de 1913) que o juízo de Bord foi um pouco apressado e que nenhum argumento convincente foi apresentado contra o poder central oculto e humano da seita, que talvez consistia em um entendimento contínuo entre os líderes para dirigir a massa das diferentes seitas, a mais conhecida e mais difundida das quais é a Maçonaria. Charles Nicollaud respondeu na R. I. S. S. de 20 de outubro de 1913, que, se o editor do Quaderni Romani entendia por chefes homens comuns de carne e osso, estava errado. Os Superiores Desconhecidos, para os verdadeiros iniciados, existem, mas vivem no Astral (são anjos decaídos ou agentes de Satanás, isto é, homens que se dedicaram de corpo e alma ao diabo e são, por isso, seu instrumento privilegiado). E é lá que, através da magia, eles dirigem os líderes das seitas, constituindo um tipo de compreensão contínua entre os líderes humanos de diferentes seitas. Para Gustave Bord, no entanto, como existe uma rivalidade entre os diferentes ritos maçônicos, não há poder humano central (o que não exclui uma direção preternatural). Neste ponto, entra na arena Guénon, aliás Esfinge, e sustenta que Nicollaud e Bord são dois antimaçons muito estranhos, e ataca a teoria da “mística” diabólica como a raiz da Maçonaria. Guénon reabilita os Superiores Desconhecidos como inspiradores e guardiões da iniciação e tradição esotérica. Em 1914, Bord responde, nas páginas de R. I. S. S., que os antimaçons estão divididos em dois campos: aqueles que acreditam que o poder central da Maçonaria é representado por alguns líderes de carne e osso chamado Superiores Desconhecidos ou membros das lojas secretas; e aqueles que acreditam que a Maçonaria é movida por uma ideia nefasta e que os Superiores Incógnitos são o diabo ou seus agentes. E ele alinha-se com os últimos. Bord acrescenta que nunca encontrou vestígios dos supremos e conhecidos chefes humanos de toda a Maçonaria; ao contrário, ele descobriu a existência do oposto: obediências maçônicas lutando entre si, fundadas por pessoas conhecidas. Guénon argumenta que tal questão não pode ser respondida por historiadores que pretendam basear-se exclusivamente em fatos positivos, comprovados por documentos escritos, e que os Superiores Desconhecidos deixaram traços precisos de sua ação em diversas circunstâncias, mas não diz quais e onde. Eles seriam entes não mais presos a esta vida, livres de todos os limites, estabelecidos num estado incondicional e absoluto, em contato direto com o Princípio primordial do Universo, entes de carne e osso que alcançaram os mais altos picos da realização espiritual, dotados, de acordo com a tradição do Extremo Oriente, de longevidade, posteridade, grande ciência e perfeita solidão! Os superiores incógnitos são os verdadeiros mestres do mundo e não homens quaisquer ou comuns.

Em suma, Nicollaud vê uma influência sobrenatural e diabólica na Maçonaria; Guénon, ao contrário, vê a ação de um Princípio transcendente que contribui para a plena realização espiritual. Para Nicollaud, Satanás resume o poder oculto sectário. Guénon, mediante a teoria dos “vários estados do ser” (uma espécie de intermediários astrais de derivação cabalística, como as Sefirot) complica tudo, relativiza a noção de indivíduo e, sobretudo, as categorias do bem e do mal, e fornece uma máscara para o diabo (21).

Diante dessa massa de argumentos, o pobre leitor de La France Antimaçonnique não sabia para onde se virar. A Esfinge tinha alcançado seu resultado, havia turvado as águas, semeado a discórdia entre os antimaçons (servindo-se até mesmo dos Quaderni Romani e tentando colocá-los contra o RISS); Em suma, ele havia feito um trabalho de despistagem.

Guènon e o Instituto Católico de Paris

Em 1915, Guénon obtém uma licença de literatura na Sorbonne, matricula-se em outono com seu amigo Pierre Germain (que também é filiado à Igreja Gnóstica) para o curso de filosofia da ciência do professor Milhaud. Lá, como já dito, ele conhece uma jovem tomista de dezenove anos formada pelo padre Sertillanges O.P. e por Maritain. Noele Maurice-Denis (mais tarde Boulet), que apresenta Guénon a Maritain em 1916. Durante o verão, Germain, que tinha reencontrado a fé em Lourdes, informa Noele Maurice-Denis sobre o passado de Guénòn. Dá-lhe a coleção completa de La Gnose. Maurice-Denis, mesmo sem compartilhar das ideias de Guénon, admira sua clareza de exposição e a seriedade de seu pensamento. O fato de ele ter sido consagrado como bispo gnóstico aos vinte e três anos não a surpreende! Vê ali apenas um erro da juventude! A jovem tomista ignora, como Germain, a “confirmação” ou “crisma” de Guénon na Grande Loja Maçônica da França e sua iniciação no sufismo 1912. Sabe que Guénon não usa mais ópio e haxixe como ajuda para… “contemplações” e isso é suficiente!

Em dezembro de 1916, Noele Maurice-Denis tenta publicar na Revue de Philosophie a tese de Guénon: Padre Peillaube, editor da revista, era favorável, mas Maritain não. Conhecia Guénon há seis meses e entendeu qual era a sua orientação filosófica, mas isso não desanimou a jovem e ingênua Maurice-Denis.

Introdução ao estudo das doutrinas hindus

Em junho de 1920, Guénon completou a edição da Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus e partiu em busca de uma editora. Para tal propósito, contata o judeu Levy-Bruhl. Leva, então, o manuscrito para Marcel Rivière, que concorda em publicá-lo.

Em fevereiro de 1921, Noele Maurice-Denis publica um artigo sobre a natureza do misticismo, mas, em uma carta datada de 27 de março, Guénon irá reafirmar sua posição de que a “metafísica” é mais sobrenatural que a mística. Maurice-Denis atribui a posição guénoniana a uma ignorância substancial da doutrina católica, apesar da educação religiosa que Guénon recebera, minimizando mais uma vez a extensão do seu erro, que não se devia à simples ignorância do cristianismo, mas à hostilidade em relação ao Evangelho e ao espírito cristão, como afirmou mais tarde Henri de Lubac (22). Noele Maurice-Denis respondeu com dois artigos publicados na Revue Universelle (15 de julho de 1921) intitulados Les Doctrines Hindoues; Maritain toma parte, já que desejava que a autora asserisse que a “metafísica” guénoniana é radicalmente incompatível com a fé católica. E ele mesmo escreveu a última frase da conclusão do primeiro artigo de Denis, “René Guénon gostaria que o degenerado Ocidente fosse pedir ao Oriente lições de metafísica e intelectualidade. Mas, ao contrário, é apenas na sua Tradição e na Religião de Cristo que o Ocidente encontrará a força para se reformar” (23). Além disso, “se Guénon, apesar de todas as suas críticas, conserva certo apreço pela Grécia, ao contrário, Roma não lhe inspira mais que desprezo” (24).

A reação de Guénon, dado seu caráter, foi muito ressentida.

Mas vamos tentar ver o conteúdo do artigo de Guénon. A “metafísica” hindu é para ele um gnosticismo perfeito e absoluto (embora Guénon jamais mencionasse a palavra gnose, no entanto, usa a palavra sânscrita jnana, que é seu equivalente, e prefere usar o termo “metafísica” que, guénonianamente, significa “conhecimento” ou… gnose), pois, de fato, a “metafísica” hindu flui para o panteísmo. Para Guénon, a moral deve ser excluída da filosofia, “a moral faz mal”, enquanto que, para a metafísica aristotélica, a moralidade natural ou filosófica existe e a ética deriva dela. Além disso, a contemplação pode ser feita com técnicas humanas sem a ajuda da graça (que para um cristão é inadmissível); por fim, a religião é uma tendência “sentimental” ou devo devocionalística à qual está ligada a moral, enquanto que, para a teologia católica, a religião não é uma emoção da sensibilidade, mas uma disposição da vontade e do intelecto, por meio dos quais o homem, sabendo que há um princípio primeiro, inclina-se a querer prestar-lhe o culto que lhe é devido por sua excelência. No outono de 1922, Guénon havia perdido toda a esperança de iniciar sua jovem amiga, porque a julgava incapaz de receber uma filosofia perene fora da forma especificamente cristã.

Colaboração de Guénon à revista Regnabit

Em 1925 (agosto-setembro), Guénon prepara um artigo intitulado Le Sacré-Cœr et La Legende du Saint Graal, publicado na revista Regnabit, a fim de mostrar a harmonia perfeita da Tradição católica com outras formas de tradição universal, ou seja, a unidade transcendente e fundamental de todas as religiões, na base homogênea da Tradição Primordial. Em 1925–1926, em três artigos subsequentes teoriza que os documentos maçônicos anteriores a 1717 (destruídos por Anderson e Dèsaguiliers) continham a fórmula de fidelidade a Deus, à Igreja e ao Rei, e, portanto, convida os leitores da Regnabit a entrever a origem católica da Maçonaria original (!) e a combater as tendências da atual Maçonaria, religiosa, mas pró-protestante nos países de língua inglesa e até antirreligiosa naqueles latinos. A hostilidade de alguns círculos neo-escolásticos em 1927 impede que Guénon continue escrevendo na revista Regnabit.

O rei do mundo

Ao mesmo tempo em que Regnabit publica seu último artigo, Guénon escreve Le Christ, pretre et roi, na revista Christ-Roi (maio-junho de 1927) e Le Roi du monde (25), onde Guénon apresenta sua versão do misterioso centro iniciático “Agartha”, centro do mundo real e simbólico ao mesmo tempo, invisível, subterrâneo, onde o “Rei do Mundo” domina. A teologia católica vê no “Rei do Mundo” guénoniano o “Príncipe deste Mundo” do qual o Evangelho nos fala e que não é outro senão o diabo.

A crise do mundo moderno

Em 1927, Guénon publica La Crise du Monde Moderne, em que remonta o processo que conduziu à civilização ocidental e refaz o apelo à constituição de uma ”elite tradicional” sensível à verdadeira intelectualidade sempre preservada no Oriente, o único que pode dar de volta para o Ocidente sua tradição específica, uma espécie de “cristianismo” revisado e corrigido. O erro e a degeneração começaram no Ocidente, então é responsabilidade sua regenerar-se por meio das doutrinas “metafísicas” orientais.

Autoridade espiritual e poder temporal

Neste livro, Guénon afirma, com razão, em parte (erro absoluto não existe) que a autoridade espiritual (dos sacerdotes) é superior à autoridade temporal (dos reis). Mas, em toda a Tradição Católica, Jesus Cristo é considerado o Senhor do Universo, ao passo que Ele “nunca considerou a concepção medieval que faz do Papa Vigário de Cristo e detentor do mesmo poder temporal de maneira direta ou indireta” (26). Pio XI, na Encíclica Quas Primas, afirma que só há esperança de paz duradoura se indivíduos e nações reconhecerem a realeza social de Jesus Cristo. Somente Ele, como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, é o nosso Senhor Supremo e Rei, tanto nas coisas espirituais quanto nas temporais, embora tenha-se recusado a exercer o poder nas coisas temporais, deixando a autoridade temporal para os leigos, enquanto exerceu poder espiritual. Com sua Ascensão ao Céu, Ele deixou nesta terra uma Pessoa que deveria ocupar seu lugar: o papa, que tem poder nas coisas espirituais e o exercita; e, nas temporais (direto para São Tomás e indireto para São Roberto Belarmino), mas que, enquanto Cristo, não quer exercê-lo (exceto em alguns casos e lugares específicos) e o deixa com a autoridade temporal, que deve exercê-lo para o bem comum temporal e subordinado à obtenção do fim sobrenatural do homem. Se a autoridade temporal abusar de seu poder, o papa pode intervir para trazê-la ao ordenamento e, se não a corrigir, poderá destitui-la. Mas esse não é de forma alguma o conceito de Guénon. “Para a Igreja Católica, o Rei do mundo é sempre e somente Cristo. (…) Por isso, estamos muito longe da concepção de Guénon que reconhece no rei do mundo o legislador primordial e o depositário da tradição primordial. Guénon reconduz a ele a ortodoxia tradicional do catolicismo com uma filiação simbólica e vê nisso, naturalmente, uma tradição legítima, mas sempre uma das muitas derivadas da tradição primordial sempre viva. (…) As visões de Guénon e da Igreja Católica sobre o rei do mundo são claramente distintas “(27).

O livro de Guénon, Autoridade Espiritual e Poder Temporal, deve, portanto, ser relacionado ao que foi dito sobre o Rei do Mundo e os Superiores Desconhecidos.

O teste triplo de 1928, a partida para o Cairo e a morte

Em janeiro de 1928, a esposa de Guénon morre de meningite e, depois de nove meses, também sua tia Madame Duru, que morava com eles. Guénon fica sozinho com a sobrinha de catorze anos, Francoise Belile, cuja mãe, uma viúva com muitos filhos, pediu para voltar para casa (28). Em 1928, passa por uma série de provações que o abalam; ele envia um pedido de casamento a seus amigos, que não é aceito. Após essa recusa, estreita relações com Madame Dina, nascida Marie W. Shillito, filha do rei de ferrovias canadenses e viúva do riquíssimo Hassan Dina Farid, um engenheiro egípcio que tinha certo interesse por assuntos ocultos. Entusiástica admiradora de Guènon, oferece sua riqueza a serviço da causa do esoterismo “tradicional”.

Entre as pirâmides e Meca

Em 5 de março de 1930, Guénon partiu para o Cairo com Madame Dina, que retornou à França sozinha após três meses. Pouco tempo depois, sua mecenas se casa com o ocultista Ernest Britt, membro de um grupo hostil a ele. No Egito, Guénon, que desde 1912 se faz chamar pelos iniciados Sheikh Abdel Wahed Yahia, leva uma vida modesta e decente e passa exotericamente ao Islã: a sua “conversão” está relacionada com a intenção secreta da qual ele nunca deixou traço escrito; por outro lado, dando grande importância aos rituais da “tradição” exotérica, ele sempre respeitará escrupulosamente seu exoterismo islâmico. Sua apostasia é explicada antes por uma razão de conveniência espiritual que por uma verdadeira conversão, porque, para ele, todas as formas tradicionais são equivalentes. O Islã parece-lhe uma ligação entre o Oriente e o Ocidente; tem o mérito de parecer (superficialmente) compatível com o cristianismo, porque respeita Jesus Cristo como profeta (mas nega-lhe a divindade). Portanto, para o guénoniano, pode-se tornar um muçulmano e continuar cristão. O Islã, no século XX, teria que jogar o papel que a Maçonaria tinha jogado no XVIII: ser o refúgio dos cristãos que queriam escapar da disciplina hierárquica da Igreja, mantendo, simplesmente, uma certa ligação com uma vaga (e falsa) mística e com uma “tradição” espúria e “primordial”.

Enquanto isso, Guénon aprende a língua árabe e, já em 1931, publica uma série de artigos em árabe e frequenta as reuniões do Sheikh Salama Radi. Em julho de 1934, casa-se com a jovem Hanem Fatma Ibrahim, que lhe dará quatro filhos, o último dos quais nascerá em 1951, após sua morte. Em 1939, “um riquíssimo judeu inglês que passou para o islamismo, seu admirador, ofereceu-lhe um casarão mobiliado” (29). Em 7 de janeiro de 1951, apesar do cuidado que recebeu de seu amigo judeu Dr. Katz, morre pronunciando o nome de Allah duas vezes.

Podemos ser guenonianos e católicos? (30)

Guénon exerce uma influência inegável e, infelizmente, às vezes muito profunda, em ambientes ligados à Tradição católica (31). No decorrer do artigo, vimos que a questão já surgiu durante a vida de nosso personagem, que colaborou em revistas católicas e monárquicas com tendências antimaçônicas e tradicionais. No entanto, a reação dos católicos integrais (R.I.S.S.) logo forçou Guénon a recuar (não depois de causar vários danos) ao Egito. Hoje muitos guénonianos, como também admite a revista Le sel de la Terre dos dominicanos de Avrillé, infiltraram-se nos ambientes da Fraternidade São Pio X de Monsenhor Lefebvre (32).

No entanto, há uma inconciliabilidade radical entre o guénonismo (e toda forma de esoterismo em geral) e o catolicismo. Na verdade, Guénon se apresenta como um autor “espiritual”, portador de uma sabedoria oriental superior até àquela da Igreja Católica! Ele despreza a ideia de salvação ou danação eterna, própria do catolicismo, e se torna um defensor da gnose ou “metafísica” que leva à identificação com o Absoluto Supremo indiferenciado (o leitor desculpe-me essas palavras, mas os iniciados devem esconder atrás de uma cortina de fumaça o nada de sua espiritualidade).

A natureza da espiritualidade de Guénon

Para desenvolver este tema conto com o interessante artigo de Antoine de Montreff, um ex-guénoniano que se converteu ao catolicismo (33), segundo o qual o caminho espiritual proposto por Guénon inclui três condições que se formam como três etapas. Para Guénon, “a iniciação envolve três condições sucessivas: 1 °) a qualificação, consistindo em certas possibilidades inerentes à própria natureza do indivíduo, e que são a matéria-prima em que o trabalho de iniciação deve ser realizado; 2 °) a transmissão (mediante o pertencimento a uma organização tradicional) de um influxo espiritual que dá ao iniciado a iluminação que o permitirá ordenar e desenvolver as possibilidades que este carrega; 3 °) o trabalho interior através do qual, com a ajuda de auxiliares ou apoio externo, este desenvolvimento será realizado gradualmente, conduzindo o indivíduo ao termo final de Libertação ou Identidade Suprema” (34). Em suma, no primeiro estágio há uma profunda diferença entre a mística cristã, que é passiva, e a iniciação, que é ativa; no segundo, que é o mais importante, recebe-se influência espiritual durante a iniciação.

Poderia acontecer que as organizações iniciáticas, devido à degeneração, possam conferir apenas a iniciação virtual, no entanto, continuarão a ser o apoio desse influxo espiritual, e o trabalho de iniciação pode-se dizer concluído. O importante é que a cadeia não seja interrompida. Na iniciação, há também a transmissão de um ensinamento, mas a transmissão da influência espiritual continua sendo o elemento principal. Em terceiro lugar, vem a iniciação efetiva e, para alcançá-la, é necessária a meditação dos símbolos.

Outro meio para progredir em direção à iniciação eficaz é o encantamento, claramente distinto da oração: na verdade, “não é um pedido, e não supõe nem mesmo a existência de uma realidade externa; trata-se de uma aspiração do indivíduo em direção ao Universal para obter uma iluminação interior. O objetivo final a ser conseguido é sempre a realização do próprio Homem Universal ” (35).

“Um dos propósitos que o próprio Guénon admitia ter era permitir que os maçons (que transmitiam ainda a iniciação virtual) chegassem à iniciação eficaz” (36).

Necessidade de estar conectado a uma organização iniciática

“A iniciação propriamente dita consiste na transmissão de um influxo espiritual, transmissão que não pode ser feita mediante uma organização tradicional regular, de modo que ninguém poderia falar de iniciação fora de um vínculo com a organização iniciática” (37). Mas quais são as organizações iniciáticas ainda válidas na Europa de hoje? De acordo com Guénon restam duas: a Maçonaria e a Companheiragem: “De todas as organizações que se pretendem iniciáticas e que encontram-se espalhadas pelo Ocidente, há apenas duas que podem reivindicar uma origem tradicional antiga e uma transmissão iniciática real; ambas eram apenas uma coisa no começo, e são a Companheiragem e a Maçonaria” (38). Através da cadeia iniciática, o iniciado recebe um influxo espiritual cuja origem não é humana (39). A influência espiritual não tem nada de mágico porque, para Guénon, a iniciação ocorre em um nível espiritual mais elevado do que o de magia, que, ao contrário, se dá a nível animal ou psíquico. É por isso que Guénon despreza aqueles que buscam poderes mágicos, defeito dos ocidentais muito ligados aos fenômenos. A magia nos deixa no estado individual, enquanto a iniciação nos faz passar da individualidade para o Universal. No entanto, o iniciado deve tornar-se consciente gradualmente desse influxo espiritual, e nisso o caminho iniciático é diferente daquele da religião: “No campo exotérico, não há qualquer inconveniente se o influxo recebido nunca for percebido conscientemente porque não é uma questão de obter um desenvolvimento espiritual eficaz; por outro lado, quando se trata de iniciação, as coisas são muito diferentes, de fato, como resultado do trabalho interno realizado pelo iniciado. Os efeitos desse influxo devem ser conhecidos, e é isso que constitui a passagem de iniciação real ” (40).

A religião, para Guénon, busca assegurar a salvação eterna e, assim, nos mantém no estado humano individual, enquanto a iniciação é certamente superior, pois tende a fazer-nos tomar a Suprema Identidade com o Absoluto incondicionado ou a Realização, o que supõe a passagem do estado individual e a tomada de posse de estados superiores à condição humana. E não é apenas uma questão de entrar em contato com esses estados superiores, mas realmente de tomar posse deles (41). Assim, também a união transformadora da terceira via dos perfeitos (a mística) é inferior à Libertação, que é o fim da iniciação (42). Portanto, a finalidade da via esotérica é muito mais excelso que a religiosa, ou exotérica, e o paraíso cristão é, para o iniciado, muito apertado, quase uma prisão (43).

Não é possível seguir o caminho iniciático sem estar ligado a um Esoterismo “Este ponto é muito importante e é pouco conhecido. Para Guénon, não se trata de permanecer sozinho no caminho iniciático. Ao mesmo tempo, é necessário praticar um exoterismo, através de uma prática religiosa. O próprio Guénon praticou a religião muçulmana em seus últimos anos “44. Ele diz: “É admissível que um exotérico ignore o esoterismo, mas, ao contrário, é inaceitável que qualquer um que se pretenda iniciado no esoterismo deseje ignorar o exoterismo; de fato, o mais compreende o menos” (45). E é por isso que os guénonianos se infiltram até nos círculos católicos tradicionalistas.

Influxo espiritual não é uma graça gratuita que vem de Deus

Se o influxo espiritual não é uma graça que vem de Deus, ou é autossugestão, ou é uma influência que vem de um anjo. Com efeito, acima do homem só há Deus ou os anjos. “A primeira solução é possível em teoria, e pode-se desejar que muitos dos que se submetem à cerimônia de iniciação não recebam nada. Mas é muito mais provável que o iniciado realmente receba um “influxo espiritual de origem não humana”. Esta é a opinião dos maiores conhecedores da maçonaria, como Charles Nicollaud, autor de L’Initiation Maçonnique, (Perrin, Paris, 1931), com prefácio de Monsenhor Jouin: “Estes eventos extraordinários [a presença percebida de Satanás] são o triste privilégio de alguns. Esses são os Superiores Desconhecidos, como a seita os chamava no século XVIII. Agentes diretos de Satanás, são suas ferramentas habituais, e é através deles que ele penetra e se propaga no seio de sociedades secretas. São os sacerdotes da Contra-Igreja. A Igreja de Cristo tem seus santos; Satanás, o macaco de Deus, tem seus iniciados.” (p. 145) … Pode-se objetar que essa influência espiritual poderia vir de um anjo, mas os anjos são ministros de Deus. Se agem sobre os homens, é para levá-los a Nosso Senhor Jesus Cristo e sua Igreja. Ora, a luta contra a Igreja é uma constante da maçonaria e o caso de Guénon nos mostrou que a iniciação, longe de conduzi-lo a aprender mais sobre a Ss. Trindade, N. S. Jesus Cristo e sua Igreja, levou-o a uma espécie de obtusidade intelectual a esse respeito e à apostasia.” (46).

A causa da apostasia de Guénon

São Tomás ensina que “a infidelidade nasce do orgulho” (47). É o mais grave dos pecados depois do ódio de Deus. A verdadeira razão para uma escolha errônea concernente ao fim último é, portanto, encontrada nas obras más, na vida, no ato da vontade que também pode ser apenas interno, como o orgulho intelectual. As más obras não são apenas a imoralidade grosseira, mas também a imoralidade sutil: a exaltação do “eu”, a busca da glória humana e a honra do mundo. Do mesmo modo que o ladrão foge da luz e ama as trevas para poder agir sem ser incomodado, o orgulhoso odeia a luz, a doutrina pública e ama a escuridão, a doutrina e a prática esotérica. A escuridão serve para cobrir sua doutrina infernal e sua conduta perversa, e odeia a luz porque desmascara sua perversidade interna e oculta! Pode-se concluir, portanto, que a vida ruim é a causa de toda descrença, especialmente dos heresiarcas e dos “grandes iniciados”, como certamente foi René Guénon. Como o diabo se tornou um anjo caído por sua má vontade (com a qual preferiu afirmar-se, mesmo condenado, que se submeter à vontade de Deus que lhe pediu um ato de obediência e humildade), da mesma forma o “grande iniciado” preferiu rejeitar a doutrina pública de Jesus para poder deleitar-se em sua obscura e confusa “tradição primordial e comum que se perde na névoa do tempo …” e que tanto gratifica seu orgulho ao poder ser chamado Mestre!, enquanto Jesus nos advertiu: “Não queirais ser chamados de Mestres. Somente um é o Mestre: o vosso pai que está no céu “.

O diabo pode afetar o homem?

Segundo São Tomás e os teólogos católicos, o diabo não pode atuar diretamente sobre o intelecto e a vontade do homem, mas apenas nos sentidos externos e internos (memória e imaginação) e através dos sentidos pode tentar influenciar indiretamente a inteligência e a vontade (48). A cerimônia de iniciação poderia muito bem ser o ponto de partida para essa ação diabólica. “Deus permite ao diabo uma certa liberdade de ação em tais cerimônias por causa de seu caráter supersticioso: há, de fato, uma invocação pelo menos implícita ao demônio sempre que se espera um efeito espiritual de uma causa que por si só não pode produzi-lo. Tais cerimônias produzem seus efeitos apenas na extensão que Deus permite, como uma punição pelo pecado da superstição. (…) O fato de se ligar-se a uma organização iniciática regular torna o pecado da superstição ainda mais sério, mas nada impede que o diabo atue mesmo fora dessa corrente iniciática. Todavia, a iniciação busca uma atmosfera favorável à atividade do diabo” (49).

Revista Sodalitium, n. 47, pp. 52–62, maio de 1998

NOTAS

1) J.-A.Cuttat, in Annuaire de l’E. P. H. E. , (Vème Section: Sciences religieuses), 1958–1959, pag. 68.

2) M.-F. James, Esotèrisme et Christianisme autour de Renè Guènon, Nouvelles Editiones Latines, Paris, 1981, pag. 17. Neste artigo baseio-me substancialmente no livro de James (que recomendo ao leitor desejoso de aprofundar-se no tema) e o integro com outros vários ensaios e com a leitura das principais obras de Guénon.

3) É sintomático a relação que liga Guénon a uma pensadora judia, que procura apresentar-se como próxima da conversão ao catolicismo: Simone Weil. Em realidade, no seu pensamento encontram-se diversos elementos da Cabala espúria e do sistema talmúdico.”Ela provavelmente não conheceu Guénon, ao qual nunca faz referência, mas algumas de suas notas, reflexões e meditações se casam singularmente ao pensamento de Guénon, e um livro como Lettre à un religieux prova que a jovem filosofa considerava pelo menos como prováveis muitas coisas que Guénon considerava como certas.” (P. Sèrant, Renè Guènon. La vita e l’opera di un grande iniziato, Convivio, Firenze, 1990, pag. 29). O religioso que respondeu à carta de Weil foi Padre Guèrard des Lauriers O.P., e escreveu que, por certas afirmações de Weil, não poderia conceder-lhe nem o Batismo, nem a Absolvição.

4) M.-F. James, op. cit., pag. 30.

5) P. Chacornac, La vie simple de Renè Guénon, èd. traditionelles, Paris, 1958, pag.24.

6) M.-F. James, op. cit., pagg. 44–45.

7) Ibid. , pag. 46.

8) Ibid. , pag. 42.

9) Ibid. , pag. 100.

10) Cfr. A. Baggio, Renè Guènon e il Cristianesimo, in «Nuova_Realtà», 1987, pag. 39.

11) N. M.aurice-Denis Boulet, L’èsotèriste Renè Guènon. in «La Pensèe Catholique», n° 77, 1962, pag. 23.

12) M.-F. James, Esoterisme, Occultisme, Franc-maçonerie et Christianisme aux XIX et XX siècles, Nouvelles Editiones Latines, Paris, 1981, pagg. 156–157.

13) Ibid., pag. 158.

14) Cfr. Sauvetre, Un bon serviteur de l’Eglise. Moseigneur Jouin, Casterman, Paris, 1936.

15) Ivi.

16) E. Jouin, Les fidèles de la Contre-Eglise: Juifs et Maçons, pag. 139.

17) Giov. VIII, 32. Cfr. C. Nitoglia, Per padre il diavolo. Un’introduzione al problema ebraico secondo la tradizione cattolica, SEB, Milano, 2002, cap. XXXIII, pagg. 437–451.

18) M.-F. James, Esoterisme et Christianisme, pag. 127.

19) P. Sèrant, Renè Guènon. La vita e le opere di un grande iniziato., Convivio, Firenze, 1990, pag. 14.

20) Ivi, pag. 198.

21) Para referência dos artigos citados cfr. M.-F. James, op. cit. pagg.132–162.

22) Lettera di H. de Lubac a N. Maurice-Denis Boulet, 31 dic. 1962. Inedita.

23) N. Maurice-Denis, “Les Doctrines Hindoues”, La Revue universelle, 15 luglio 1921, pag. 246.

24) P. Sèrant, Renè Guènon. La vita e le opere di un grande iniziato, Convivio, Firenze, 1990, pag. 100.

25) M.-F. James, op. cit. , pag. 277.

26) P. Di Vona, Evola Guénon De Giorgio, SeaR, Borzano (RE), 1993, pag. 191.

27) Ibid., pagg. 195–196.

28) Ibid., pag; 295.

29) Ibid. , pag. 303.

30) L. Mèroz, Renè Guènon ou la sagesse initiatique, Plon, 1962.

31) E. Valtrè, La droite du Père. Enquete sur la Tradition catholique aujourd’hui, Guy Trèdaniel, 1994.

32) Le sel de la terre , n° 13, etè 1995, pagg. 34–35.

33) Antoine de Montreff, Qui a inspirè Renè Guènon? in «Le sel de la terre», n°13, etè 1995, pagg.33–64.

34) R. Guènon, Aperçus sur l’initiation, Villain et Belhomme-èd. traditionelles, Paris, 1973, pag. 34.

35) Ibid. , pag. 169.

36) A. de Montreff, cit. pag. 42.

37) R. Guènon, op. cit. , pag. 53.

38) Ibid., pag. 41.

39) Ibid. , pag. 58.

40) R. Guènon, Initiation et rèalilisation spirituelle, Villain et Belhomme-èd. traditionelles, Paris, 1974, pagg. 48–49.

41) Cfr. Aperçus sur l’Initiation, pagg. 27–28.

42) Cfr. Initiation et rèalilisation spirituelle, pagg. 81–82.

43) Ibid. , pagg. 78–79.

44) A. de Montreff, cit. , pag. 48.

45) Cfr. Initiation et rèalisation spirituelle, pag. 71.

46) A. de Montreff, cit. , pagg. 57–58.

47) S. T. II-II, q. 10, a. 1, ad 3um.

48) S. T. II-II, q. 10, a. 3 in corpore. II-II q. 96, a. 1. II-II q. 97, a. 1. I q. 114. II-II q. 165 a. 1.

49) A. de Montreff, cit. , pag 61.